sexta-feira, agosto 17, 2007

todos os pássaros sossegaram.
as crianças desceram das árvores, guardaram os jogos, recolheram a casa.

a noite está próxima.

levanto a cabeça e deixo a voz deambular por dentro deste silêncio de água e de estrelas.

a noite está próxima.

deixo o corpo escorregar na poeira luminosa.
acendo um cigarro, ponho-me a falar com o meu fantasma.

longe daqui, a cidade enfeitou-se com os seus crimes de néon, com suas traições.

ouço hélices de barcos, motores, quando um rosto esvoaça ao alcance da mão.

a verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em cidade, com um sussurro cortante nos lábios.

e atravessei cidades e ruas sem nome, estradas, pontes que ligam uma treva a outra treva.

caminho como sempre caminhei, dentro de mim - rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens.

o absinto, esse álcool que me permitiu medir o tempo no movimento dos astros

e vi a vida como um barco à deriva. vi esse barco tentar regressar ao porto - mas os portos são olhos enormes que vigiam os oceanos. servem para levarmos o corpo até um deles e morrer.

a noite está próxima.

vejo acenderem-se mãos voláteis, e uma sede de poços e de nomadismo.
sulco a areia que sitia as cidades para trás abandonadas.

abro fendas na memória, e a noite surge com suas cidades queimadas, desertas - e o vento... o vento cintila onde cresce o lobo que me ronda o sono.

estendo a mão, pego no revólver, mas nada acontece.

de nada me serviria inventar outra vez o rio das palavras, de nada me serviria saber a geometria exacta dos cristais, ou redesenhar o corpo e aperfeiçoá-lo.

fico assim, inerte, à beira da noite... olhando o brilho da luz rojando águas.

o regresso nunca foi possível
o verdadeiro fugitivo não regressa, não sabe regressar, reduz os continentes a distâncias mentais.

aprende a falar dos outros - e, por cima dele, as constelações vão esboçando o tormentoso destino dos homens.

pressinto uma sombra a envolver-me. ouço músicas... espirais de som subindo aos subúrbios da alma.

e acendo o lume das pirâmides, onde o tempo não foi inventado, e renego a alegria.

não semearei o meu desgosto, por onde passar.

nem as minhas traições.

2 comentários:

© Maria Manuel disse...

«levanto a cabeça e deixo a voz deambular por dentro deste silêncio de água e de estrelas.»

«caminho como sempre caminhei, dentro de mim - rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens.»

este texto tem momentos lindos!

bookworm disse...

:')