todos os pássaros sossegaram.
as crianças desceram das árvores, guardaram os jogos, recolheram a casa.
a noite está próxima.
levanto a cabeça e deixo a voz deambular por dentro deste silêncio de água e de estrelas.
a noite está próxima.
deixo o corpo escorregar na poeira luminosa.
acendo um cigarro, ponho-me a falar com o meu fantasma.
longe daqui, a cidade enfeitou-se com os seus crimes de néon, com suas traições.
ouço hélices de barcos, motores, quando um rosto esvoaça ao alcance da mão.
a verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em cidade, com um sussurro cortante nos lábios.
e atravessei cidades e ruas sem nome, estradas, pontes que ligam uma treva a outra treva.
caminho como sempre caminhei, dentro de mim - rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens.
o absinto, esse álcool que me permitiu medir o tempo no movimento dos astros
e vi a vida como um barco à deriva. vi esse barco tentar regressar ao porto - mas os portos são olhos enormes que vigiam os oceanos. servem para levarmos o corpo até um deles e morrer.
a noite está próxima.
vejo acenderem-se mãos voláteis, e uma sede de poços e de nomadismo.
sulco a areia que sitia as cidades para trás abandonadas.
abro fendas na memória, e a noite surge com suas cidades queimadas, desertas - e o vento... o vento cintila onde cresce o lobo que me ronda o sono.
estendo a mão, pego no revólver, mas nada acontece.
de nada me serviria inventar outra vez o rio das palavras, de nada me serviria saber a geometria exacta dos cristais, ou redesenhar o corpo e aperfeiçoá-lo.
fico assim, inerte, à beira da noite... olhando o brilho da luz rojando águas.
o regresso nunca foi possível
o verdadeiro fugitivo não regressa, não sabe regressar, reduz os continentes a distâncias mentais.
aprende a falar dos outros - e, por cima dele, as constelações vão esboçando o tormentoso destino dos homens.
pressinto uma sombra a envolver-me. ouço músicas... espirais de som subindo aos subúrbios da alma.
e acendo o lume das pirâmides, onde o tempo não foi inventado, e renego a alegria.
não semearei o meu desgosto, por onde passar.
nem as minhas traições.
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2 comentários:
«levanto a cabeça e deixo a voz deambular por dentro deste silêncio de água e de estrelas.»
«caminho como sempre caminhei, dentro de mim - rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens.»
este texto tem momentos lindos!
:')
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