terça-feira, janeiro 19, 2010

haiti


reader's digest
do vouyerismo depois da tragédia -o melhor que já li sobre o haiti, nos posts de luís januário, eduardo pitta e francisco josé viegas:



Várias catástrofes se abateram sobre a República dos escravos pretos: o terramoto, a ajuda internacional e os jornalistas. Um neurocirurgião americano corre à frente de uma câmara, à procura de uma vítima. Sempre em grande plano realiza um simulacro de exame médico, debita um diagnóstico e pede à enfermeira:- Antibióticos e uma gaze. Uma equipa de socorro brasileira, ao serviço da Globo, detecta uma mulher soterrada. Os jornalistas quase bloqueiam o acesso à vítima. Uma delas estende para o buraco, no solo, um microfone. Um médico, neurocirurgião, e uma jornalista. Aqui está a aliança soturna com que se entretém o mundo, a ajuda fraterna, a lágrima no sofá. A República dos escravos pretos, que cortou todas as árvores, onde julgaram ter nascido a doença ominosa do século XX, teve agora o golpe de misericórdia, pela mão das forças do subsolo ou de um deus que já ninguém reclama. Não há, nas redacções das televisões nem nas Associações médicas, quem recorde que não exibir o sofrimento alheio é o princípio de toda a compaixão.

luís januário, n'a natureza do mal



Tenho-me abstido de escrever sobre a tragédia do Haiti por uma razão muito simples: a escala do horror não se compadece com lugares-comuns ou piedosas declarações de intenção. Isto dito, um breve comentário ao voyeurismo universal.

Ao fim de cinco dias, nenhuma televisão mostrou ainda qualquer iniciativa de ajuda concreta às populações afectadas. Estou a falar de seis canais portugueses (todos, excepto a TVI24) e outros tantos estrangeiros. Só se vê propaganda, tão inócua como a imagem ao alto.

Os jornalistas fazem despachos a partir do aeroporto, vingando a honra perdida de um famoso jornalista, hoje em parte incerta, que fez directos da Guerra do Golfo (1991) a mais de mil quilómetros de distância. E o que aí vem promete ser mais indigente.

No dia 13, falava-se em meio milhão de mortos. Mas a OMS declara que o seu número andará entre 40 e 50 mil.

Um futebolista obscuro dá uma conferência de imprensa para manifestar estados de alma. Não consta que tenham entrevistado putas do Intendente para comentarem a situação das colegas oxalés (i.e., caribenhas).

Uma portuguesa no local: «Estava a trabalhar na minha tese de mestrado quando a terra tremeu.» Só não disse se a tese é sobre os Tonton Macoutes.

O avião da Força Aérea regressa ao Montijo ao fim de poucas horas. Dando de barato a leviandade dos procedimentos, para quê a visita (com direito a cobertura televisiva) do ministro da Administração Interna, depois do acto falhado? Para acentuar ainda mais o ridículo?

Os Estados Unidos têm milhares de homens no terreno. Mas a alimentação e a água são distribuídos a conta gotas porque... não estão garantidas condições mínimas de segurança!

Obama convida Bush, o tal, para angariar fundos para o Haiti. Bush, talvez esquecido do Katrina, faz um speech nos jardins da Casa Branca.

Excitada, a RTP anuncia uma reportagem da TV Globo. A reportagem é uma jornalista brasileira a realçar a valentia de um soldado brasileiro de cócoras no chão. Esgotado o plano do rapaz, a reportagem acaba. Afinal, o Brasil não é menos que os outros: defende o seu prime time.

Passaram cinco dias. Pode ser distração minha, mas ainda não vi hospitais de campanha, acampamentos para desalojados, nem equipas de limpeza dos destroços. Coisas de somenos, naturalmente.





eduardo pitta, da literatura



As televisões — graças, sobretudo, ao aumento da percentagem de meninas e meninos ignorantes nas suas secções de «internacional» — gostam de «tragédias humanitárias». Raramente estão lá, nos aeroportos sujos, nas ruas malcheirosas, nas casas em ruínas, entre os feridos e os esfomeados. No Ruanda, onde estive uma semana na década de oitenta, vi repórteres a telefonar para as redacções a protestar pelas condições do hotel (Carlos Fino, valha a verdade, também se queixava de que havia bombardeamentos à hora a que os jornalistas procuravam um pouco de tranquilidade no hotel, ao fim da tarde); e vi jornalistas, como eu, que regressavam de Ramallah a meio da tarde para não perderem a melhor hora do buffet no hotel. A vida é assim. Felizmente, andei sempre com fotógrafos corajosos e gostava de falar disso. Um dia, no México, depois de passarmos uns dias entre Chiapas e a Guatemala, dois jornalistas (um do NYT e outro do Miami Herald) invejaram as fotos do João Francisco Vilhena; regressávamos de umas trapalhadas na Sierra Madre del Sur, com tiroteios aqui e ali, barreiras militares, paragens no alto das montanhas — estávamos em trabalho freelance para a Visão. O João, que tinha passado pela pior experiência da vida de um repórter, que é estar durante cinco minutos com o cano de uma metralhadora apontada à cabeça, a meio da noite, no meio do Cañon del Sumidero (enquanto eu oferecia volumes de Marlboro em troca), nem pestanejou quando os periodistas y reporteros que estavam no Café del Teatro de San Cristóbal de Las Casas (com um orçamento que lhes permitia pagar guias que os levavam a visitar aldeias turísticas chamulas, que depois eles transformavam em cenário de guerra civil entre exército e zapatistas) se preparavam para nos oferecer uns milhares de dólares pelo material. «Vão-se foder», foi o que ele lhes disse. Nunca agradeci suficientemente ao João este gesto (ele hoje trabalha no Sol). Coisa parecida aconteceu quando o Pedro Loureiro (então para a Grande Reportagem) e eu regressávamos de dois dias em plena guerra civil na fronteira de Gaza com o Egipto e Israel. Tínhamos sido evacuados de Termit/Raffah para o Egipto a meio da noite, no meio de explosões e de tiroteio (no meio da coisa ficámos sem um dos coletes à prova de bala, já agora). Uma estupidez corajosa, andar por ali. Quando, um dia depois de termos sido resgatados no meio das dunas, chegámos a Jerusalém, eu subi ao quarto para tomar banho e escrever; o Pedro ficou um bocado mais no bar. Ouvi os berros do Pedro e ele explicou-me que um filho da puta (a expressão é dele) de uma revista francesa lhe queria dar 2 mil euros pelo material, mas que nós não o podíamos publicar. Uma semana depois, o filho da puta publicou uma reportagem como se lá estivesse, ensanguentada e cheia de números fornecidos pela ONU — quando mal saiu da esplanada do hotel, onde lia o Haaretz e um tradutor lhe passava as citações dos outros jornais. Como conhecíamos bem o fotógrafo que vendeu as fotografias, sabemos do que falávamos.

A ideia de que se morre bastante no meio das tragédias é ampliada pelo negócio das ONG que recebem à cabeça — e antecipadamente — pelos refugiados que albergam em acampamentos. Três mil, dezoito mil, um milhão. Nada pára a vontade de aumentar a eficácia da própria tragédia. Os efeitos colaterais são fantásticos. O problema é que a morte tem poucos adjectivos. Basta falarem com alguém que tenha feito a cobertura de casos assim — Martin Adler, que escreveu durante muito tempo para a Grande Reportagem, antes de ser assassinado a tiro e pelas costas, na Somália, durante uma manifestação convocada pelos Tribunais Islâmicos, era o mais crítico dos guionistas da tragédia.

A pornografia televisiva em redor do Haiti vai no mesmo sentido. Eduardo Pitta fala do assunto — e bem. De um milhão, o número de vítimas passa a meio milhão; de meio milhão está agora em 50 mil, mas há quem avance 200 mil. Mas ajuda-ajuda-ajuda, vê-se pouco. Imagens repetidas até à exaustão e sem critério (com a excepção da TVI24, como escreve o Eduardo), retratinhos da net e das webcam, testemunhos que repetem a tragédia até ao infinito, números escutados na esquina do hotel. Um dia, um repórter foi apanhado num banco de jardim de uma cidade do Médio Oriente a fazer um despacho telefónico para a sua rádio, falando dos mísseis Scud que iriam cair nessa tarde. Uns amigos que passavam, entre o divertido e o enojado, ainda o convidaram para jantar num restaurante de gente corajosa que tinha um belo humus com kaftedes, e beber um whisky (quando o vejo, lembro-me de quando fazia reportagens de campo, nos estádios, como se o mundo tivesse desabado). A indústria da tragédia é uma das misérias do jornalismo.


francisco josé viegas, n'a origem das espécies





(destaques meus)

1 comentário:

franksy! disse...

não resisti a vir aqui dizer-te que: já falta pouco!*