segunda-feira, maio 04, 2009

o último amigo



enquanto todos reagem à notícia da morte de vasco granja sublinhando o seu papel de agente cultural na divulgação de cartoons, desenho animado e banda desenhada em portugal, eu guardo dele uma recordação invulgar, pessoal e terna. mais do que o homem que animou a minha infância, entrando na minha casa pelo ecrã da tv, vasco granja acabou por ser aquele que encaro como o último amigo da minha mãe. foi em maio do ano passado que ambos se cruzaram numa instituição de saúde dedicada a cuidados geriátricos. desde o primeiro olhar que os vi trocar, tornou-se evidente a empatia mútua e durante todo o tempo que durou o internamento conjunto criaram um elo de ligação que me levava, quase invariavelmente, a encontrá-los juntos nas horas de visita. é por isso que, por mais que tente focar a memória e enquadrá-lo numa televisão a preto e branco, logo se sobrepõem outras recordações mais recentes, mais intensas, que se lhe sobrepõem e esbatem a imagem antiga. lembro-lhe o sorriso e o brilho dos olhos azuis, as tentativas de diálogo com a minha mãe, já incapaz de uma conversa inteligível, a delicadeza dos gestos cavalheirescos que tinha para com ela e que certamente a encantaram. ela, reservada, mas sempre vaidosa e coquette até ao fim dos seus dias, creio que chegava a flirtar um pouco com ele. esta situação, simultaneamente descarada e inocente, tão semelhante apesar de tão nos antípodas dos "namoros" das crianças pequenas, quase chegou ao ponto de fomentar algumas inquietações ao meu pai, não fosse eu - enternecida e divertida - deitar água na fervura do ciúme em que ele ardia.
ela tinha 80 anos quando nos deixou, em novembro. ele, segundo li na notícia, tinha 83. muitas vezes me perguntei o que seria feito dele. hoje soube. não falarei agora da perda cultural que foi para o país, embora me doa e enfureça a cretinice sem nome de a televisão pública ter destruído o arquivo histórico dos seus programas. mas não foi essa perda de que todos falam - e que também me é comum - que me fez saltar as lágrimas mal li o anúncio da sua morte. foi a recordação da minha mãe com a cabeça encostada no seu ombro. por ela, falei apenas do seu último amigo, do último homem que a fez sentir e agir como a mulher que sempre conheci.

à família do vasco, se calhar a ler-me, um abraço da filha da gisela.


9 comentários:

fallorca disse...

Bonita história, alex :)

Scarlata disse...

Que triste... eu também gostava muito dele... :(

Maria Afonso disse...

Uma história lindíssima!

bookworm disse...

senti absoluta necessidade de a escrever. o meu único cuidado foi de não expôr de forma excessiva, factos da vida de outrém, que não me dizem respeito senão indirectamente. espero tê-lo conseguido.

sem-se-ver disse...

a rtp destruiu o arquivo dos programas do vasco granja??????





(post e história lindíssimos)

fallorca disse...

sem-se-ver, mas o que é que a rtp e a rdp não destruiram e destroem permanentemente?
Desculpa lá, alex

fallorca disse...

alex, então? Siga a programação :)

Paulo disse...

Que maravilha. Sem grandes comentários, não é preciso.

margarete disse...

Querida Alex,
Tinha aqui esta página aberta há algum tempo, indicada por ti num post do Facebook. Quando a abri fiquei paralisada por dar com comentários do querido Fallorca.
Já são muitas ausências.
Beijinhos muitos