terça-feira, dezembro 09, 2008

saír do armário


bicho-do-mato. sem irmãos, sem primos. a menina de botas ortopédicas que desatava mal saía de casa, atafulhada de roupa para não se constipar, a boina guardada dentro da pasta da escola para não ser gozada pelos colegas. resistência passiva. numa redoma.

as tardes em casa, vigiada pela avó paterna, parada, especada à porta do quarto - incapaz de um ardil ou subtileza - a olhar para mim. perguntava-lhe o que estava a fazer ali, a segurar a ombreira da porta e ela, com a honestidade dos que passaram a vida a obedecer, respondia-me que o meu pai a tinha mandado ver o que eu fazia, dentro das quatro paredes do meu quarto.

o corredor era comprido. comprido e largo, com um recanto onde mais tarde se fez um guarda-fatos, de parede a parede. nele aprendi primeiro a andar de triciclo, de bicicleta depois, antes de ter obtido autorização para ir para as primeiras voltas no passeio, em redor dos prédios. o sr. amaro, um braço paralisado, tinha uma oficina improvisada para remendar os furos dos pneus das bicicletas de toda a canalha. sem mão(s) a medir.

pedalar rua acima, rua abaixo, em redor do jardim da companhia das àguas. andar por cima do muro, saltar na parte mais alta, chupar as flores cor-de-rosa dos arbustos, colher as bolinhas laranja para soprar por zarabatanas improvisadas. os mesmos arbustos onde mais tarde me escondi com colegas para fumarmos os primeiros cigarros roubados ao meu pai.

até aos 10 anos, o colégio. filinhas ordeiras para as aulas, para o refeitório, para as visitas de estudo. o horror ao ballet, às aulas de ginástica. um canto para me enfiar ao abrigo dos olhares e gracejos e implicâncias dos miúdos mais desembaraçados. um dia, a professora mandou-me ir buscar um apagador à sala do lado. entrei tão silenciosamente que ninguém deu por mim. a aula prosseguiu e eu ali, parada, sem coragem para interromper, sem coragem para voltar para trás de mãos a abanar. neste impasse, uma porta aberta de um armário e eu metida lá dentro, acocorada, até se terem lembrado de ir procurar por mim.

"não". consta que foi a primeira palavra que aprendi a dizer. so quiet, so low-profile. and yet... boa aluna, tentaram fazer-me chefe de grupo, mas a semente da anarquia estragava-me o perfil de "capataz". esgueirava-me antes de me irem buscar à porta do colégio, para ir sozinha para casa, envergonhada e asfixiada pela super-protecção.

o ambiente que se viveu após 74 e a transição para a escola preparatória, foi o fósforo aceso no rastilho de pólvora comprimida. a passagem da resistência passiva para a rebelião descarada. a adolescência em pé de guerra.

a geração que viu os helicópteros a sobrevoar a fernando pessoa no 11 de março e ia ouvindo os rumores do que se estava a passar no ralis. o pai de uma colega que teve de fugir para o brasil. os professores que eram levados a conselho directivo por turmas em peso. e aqueles em que não se tocava nem num cabelo, defendidos pelos mesmos pequenos selvagens que aprendiam em (quase) auto-gestão que o respeito não se obtinha por decreto ou hierarquia. tinha que se merecer.

escapar à vigilância do sr. lima e ao seu manso pastor alemão e passar as redes da escola para ir comprar gelados à sorraia. caramelo, chocolate, morango. gelados de máquina, em cone, a vinte e cinco tostões, subtraídos ao cofre onde guardava as moeditas que ia cravando aos meus avós, as notinhas verdes do santo antónio a cada fim-de-semana.

saír da fernando pessoa para os viveiros. um lamaçal, os pavilhões ainda em construção. a sala "de convívio" tinha só as paredes. alguns colegas roubavam sódio nos laboratórios de química para fazer fogos de artifício nas poças das casas de banho que as empregadas não limpavam nunca. os esqueletos com um lencinho na cabeça e um cigarro no maxilar escancarado. cadeiras partidas, brincadeiras com extintores, o pó vermelho do chão. tóxico, segundo se dizia. alguns professores que nos dias quentes nos levavam para aulas ao ar livre, sentados na relva, fora dos muros da escola. os "furos", os tempos livres, a era de ouro das conversas intermináveis. sobre tudo e sobre nada.

amizades que perduraram, outras a que se perdeu o rasto. os primeiros copos, as aventuras para lá dos limites do bairro, as horas de regresso a casa cada vez mais esticadas.

.................................................................................................................................
.................................................................................................................................

suponho que cresci. ou faço de conta que sim. não mudei o mundo. não sei se o mundo me mudou a mim. passou a época das rebeliões. ainda sei dizer não, mas voltei a "desapertar as botas" quando ninguém está a ver. e quantas, quantas vezes sinto que continuo a lutar comigo mesma para saír daquele armário.


22 comentários:

Scarlata disse...

este é um daquels que requer tempo, ja ca volto para ler. ;D

Scarlata disse...

Que bonito amarcord... eh também viajei no tempo, ja passou tanto tempo e aind assim parece que foi ontem...

bookworm disse...

o tempo parece-me cada vez mais relativo, scar (devo estar a ficar velha :P).

mdsol disse...

:)))

alcofa disse...

Também estava na Fernando Pessoa quando o barulho dos aviões do 11 de Março abafaram os sons da aula de música. Também sujei as botas (de prateleira) com o pó vermelho dos Viveiros e também tive aulas na relva debaixo de uma árvore. Obrigada pela recordação

bookworm disse...

alcofa, já deixei uns comentários no teu blog. estive a lê-lo com a sensação crescente de familiaridade ainda devo ter por aí umas cartas tuas com o mesmo estilo de escrita), até que dei com a tua foto e confirmei as minhas suspeitas.

gostei de te rever. agora não te largo o rasto. vou linkar-te já a seguir.

;)

alcofa disse...

Cartas? Acho que naqueles tempos dos Olivais escreviamos milhões de cartas. Não te consigo identificar, mas não há pressa, lá chegarei. Já linkei e vou andar por aqui :)

bookworm disse...

:D

já lá vai bué de tempo. escreviamos muito, sim; mas as cartas que devo ter por aí são dos meses de férias. e uns versitos de pé quebrado que dedicaste a uma professora de português. ainda escreves com uma bolinha redondinha por cima do i? :)

há por aí mais pistas espalhadas no blog...take your time. ;)

alcofa disse...

Descobri!!!! Vi a foto da Holanda e... o Cocas. Vi os livros: O Meu Pé de Laranja Lima, Dom Camilo e o seu rebanho e os Contos do Gin Tónico. Li-os porque foste tu que mos emprestas-te. Tinhas uma gaveta cheia de saias... que não usavas... mas os livros não tinham descanso :) Já não ponho bolinhas em cima dos is, mas os versos de pé quebrado fizemo-los em conjunto com a Ana C. para a Fada Oriana (assim "baptizada" por causa do penteado estranho). Vi a Ana C. há uns anos aqui para as bandas da linha de Sintra... Bolas, sinto-me um dinoussauro :)

bookworm disse...

eheheh, dinossauros sim, mas bem conservados. ;)

és a primeira pessoa dos meus conhecimentos pré-cibernáuticos que tem um blog. sinto-me quase comovida. :')

mais logo sou capaz de ligar à ana c. a última vez que soube de ti, foi através dela.

alcofa disse...

Pois, os dinossauros das colheitas de 60 são especiais... mas há dias em que sinto que estou a viver noutro planeta... Ora pois que isto do cibermundo é mesmo uma coisa do outro mundo. Andava eu por aqui à procura da razão porque deixaram a Piscina dos Olivais chegar à condição de pardieiro e dou de caras contigo e com os oliveirinhas do Olivesaria... A internet é um penico...

bookworm disse...

e descobriste porque é que deixaram a nossa piscina chegar a pardieiro? não se percebe, pois não? :(

alcofa disse...

Está fechada vai para mais de um ano, mas agora tem sido sistematicamente vandalizada. Aquilo parece uma zona de guerra. Eu não vi, mas a minha irmã que passa por lá todos os dias contou-me. Na zona comenta-se que querem fazer ali um condomínio privado... os terrenos valem ouro... e a câmara como também tem sido vandalizada de dinheiros deve estar danadinha para vender todos os pedacinhos livres dos Olivais... aquilo tornou-se um "bairro fantasma" nas palavras da minha mãe que ainda lá mora e que adorava as relvas e as árvores... está tudo ao abandono...

bookworm disse...

condomínio privado no lugar de uma piscina olímpica? que raiva, pá. >:[

Anónimo disse...

o pai de uma colega que fugiu para o brasil...

eu também me lembro de sair do FP ao som dos helicópteros e o meu pai levar um colega até à Portela e de repente ver toda a gente no chão e o som dos tiros de metralhadora

eu tinha na minha turma, uma colega de seu apelido, "Quintanilha", e cuja família recebia visitas do Galvão de Melo.

e tinhamos aulas de religião e moral nas quais se falava abertamente do aborto...

e guerras de chorões... parece que agora se chamam aloe vera e são muito new age

bookworm disse...

se eras da turma da quintanilha, eras da minha turma. :D
agora só falta descobrir quem és...o que se calhar não vai ser fácil, porque não tens link para blog. :/

(os chorões não são aloe vera)

este post está a revelar-se muito frutífero.

Anónimo disse...

então eras mesmo da minha turma, o filipe (o único PPD da altura) da portela, o sampaio (radar kadafi e delfins) que veio comigo desde a 2ª classe... os nomes em inglês que tinhamos à frente (não me lembro do meu, mas lembro-me de uma Tess que era o dobro de nós pobres miúdos)

os filmes pedagógicos sobre as drogas (e resultaram!)

não tenho links mas tenho um blog muito errático - apresmidifaune.wordpress.com

bookworm disse...

já linkei o teu blog, ainda que continue sem saber quem és. de facto só me lembro daquelas etiquetas com os nomes em inglês. tenho uma vaga ideia de quem possa ser o sampaio, acho que foi novamente meu colega nos viveiros. és tu o filipe? vou espremer os neurónios e já volto...

Anónimo disse...

se foi teu colega nos viveiros, continuas a estar na minha turma... 7 e 8º C (ou seria D?) no 9º foi opção Saúde e ele foi para uma turma da tarde. só 20 anos depois nos re-encontrámos num concerto homenagem aos Xutos, tipo nem um dia passou desde que fomos teens.

no 8º lembro-me de um colega meu com 18 anos na altura (o "Filetes") que nos deu grandes lições de vida - tipo tenham juízo e não queiram ser como eu. e de um prof de história, o Barba Ruiva.

esse sampaio é o teclista dos Delfins.

bookworm disse...

agora é que eu estou completamente baralhada. eu lembro-me do sampaio precisamente das aulas de saúde do 9º ano (e eu sempre estive no horário da manhã), mas tinha ideia que na altura o tipo tocava bateria (sou tão despistada que nunca o liguei aos delfins).
no 7º e no 8º lembro-me que tive na turma uma série de gajos mais velhos e muito poucos (3? 4?) da minha idade.

Anónimo disse...

agora também eu estou baralhado...

o sampaio começou por ser baterista, aliás formou uma banda de garagem de imitação dos beatles, mais tarde passou para os radar kadafi e finalmente assentou nos delfins.

nas aulas de saúde a prof. levou-nos à gulbenkian numa das últimas aulas, creio que uma das colegas engravidou.

vi uma foto tua no blog com 22 anos e fiquei mais baralhado porque juro que te reconheço, talvez com óculos???

"reconheci" o cabelo curto

em todo o caso, mais umas referencias da turma do 9º -- se os nomes te dizem algo, miguel maria melo

e como é feio estar aqui a escrever nomes de outros deixo o meu - nuno

bookworm disse...

eu não fui à aula da gulbenkian, estava doente.

óculos? ná...usei no ciclo sim, mas só nas aulas e depressa me fartei. deves estar a confundir-me com outra colega que usava óculos e cabelo curto e que foi da minha turma do ciclo ao 11º ano.

o nome de miguel melo não me é estranho, mas não estou a conseguir associar a cara. assim como também não estou a associar a tua.
vou procurar o mail no teu blog e prosseguimos aí a conversa.