terça-feira, dezembro 09, 2008

história do cronista e dos gatos que o ensinaram a perder tempo


Não resisti a transcrever na íntegra este post do Alexandre Borges no Sinusite Crónica:


Sou um homem com dois gatos para criar. Foi uma coisa inesperada. Não planeada. Aconteceu. Juro. Assim à laia de noite de loucura. Agora, arco com as consequências. A literatura, o trabalho, a casa, eu próprio, nada disto foi mais o mesmo. Dou por mim pasmado a olhar-lhes os focinhos imóveis, os olhares imperscrutáveis, os instantes repentinos em que se desatam a coçar ou lamber alucinadamente. Em vez de escrever. Em vez de trabalhar. Em vez doutra coisa qualquer. Porque outra coisa qualquer seria mais útil.


É bizarro. E estou preocupado. A família não me preparou para isto. Nem a escola. Nem a Filosofia. Nem os anos de trabalho que levo. Uma pessoa educa-se para as finalidades, para a consequência, para a produção. E acaba a esbanjar horas do dia, dias a fio, a limpar dejectos em caixas de areia, derramar ração sobre tigelas anacronicamente infantis, a fazer festas e cócegas e a levar marradinhas e a perdoar-lhes cruzarem-me o teclado a correr, para cá e para lá, perseguindo-se, resultando em belas prosas de texto, ready made, deste estilo:


Wwwwwwwwwwwwwwwwghbcnsiuyhrn38iznbmfiou7ewnfcmovuu7hb323 klfujjhaoanmddddddddddddçlkvjhklbooooooooooooooo



Eles gostam de insistir nalgumas teclas. Às vezes, quase reproduzem sequências exactas da “Ode Triunfal”. Mas não sei que espécie de felinos teria Álvaro de Campos. Nem que lhes deu ele a ler, se mais os franceses, se mais os anglo-saxónicos.


Pior. Há angústia. Não pelo que não estou a fazer, a produzir, a avançar. Mas por não estar mais com eles. Sobretudo, pela impossibilidade de entrar naquelas pequenas cabeças adornadas de bigodes e orelhas desmesuradas. Há dias, leitor, em que fico à espera de ouvi-los rir. Haverá medicação para isto?


Tenho a casa a cheirar a gato. Perco preciosos quartos de hora de manhã a aspirar a areia que espalharam pelo chão da cozinha numa interessante instalação pós-moderna. E a cumprimentá-los e abrir-lhes a porta e falar com aquela voz de desenho animado que todos imbecilmente fazemos quando nos dirigimos a animais domésticos.


E creio que isto nunca irá a lugar nenhum. Mas também nunca será melhor. Tê-los a dormir sobre nós ou a andarem-nos entre as pernas quando se regressa de fim-de-semana. É um amor parvo e inútil. Comme il faut. Mas chateia-me que nunca possam vir a ler este texto. E a limitar-se a um curto gesto de cabeça, bigodes e orelhas desmesuradas, de aprovação ou censura. Não pedia mais.


Por outro lado, ao menos não dão palpites. E têm um silêncio e uns gestos indolentes e demorados com que talvez venha ainda a aprender.





(bolds meus)





4 comentários:

Scarlata disse...

Muito poetico...

bookworm disse...

tu sabes lá o que é amor de gatos.

Scarlata disse...

entao nao sei... so vivi anos e anos numa casa com gatos...

menina tóxica disse...

este texto está delicioso.

é que é mesmo um amor parvo e inútil (comme il faut) ^^