quarta-feira, novembro 26, 2008

o delírio e o gozo da escrita

(...)
Ali, numa casa de idosas madeiras coloniais e de jovens aprumados do Palácio de Torre Tagle, enquanto esperava que o funcionário, avivado pela telefonadela do meu professor, pusesse mais selos e recolhesse as assinaturas correspondentes na certidão de nascimento e na sentença de divórcio, ouvi falar de uma nova catástrofe. Tratava-se de um naufrágio, algo quase inconcebível! Um barco italiano, atracado no porto de Callao, repleto de passageiros e de visitas que se despediam, de repente, contrariando todas as leis da física e da razão, voltava-se sobre si mesmo, tombava para bombordo, e afundava-se rapidamente no Pacífico, morrendo, por contusões, afogamento, ou, assombrosamente, mordidelas de tubarões, todas as pessoas que se encontravam a bordo. Eram duas senhoras, conversavam ao meu lado, à espera de qualquer trâmite. Não brincavam, e levavam o naufrágio muito a sério.
- Ocorreu num folhetim de Pedro Camacho, não foi? - intrometi-me.
- No das quatro - confirmou a mais velha, uma mulher ossuda e enérgica, com forte acento eslavo. - O de Alberto Quinteros, o cardiologista.
- Aquele que era ginecologista o mês passado - meteu a colherada, sorrindo, uma jovenzinha que escrevia à máquina, e pôs o dedo na testa, indicando que alguém tinha ficado louco.
- Não ouviu o programa de ontem? - apiedou-se carinhosamente a acompanhante da estrangeira, uma senhora com lentes e pronúncia ultralimenha. - O senhor Quinteros ia de férias para o Chile, com a mulher e a filha Charo. E afogaram-se os três!
- Afogaram-se todos - precisou a senhora estrangeira. - O sobrinho Richard, e Elianita e o marido, o Pelirrojo Antúnez, o tontinho, e até o filhinho do incesto, Rubencito. Tinham ido despedir-se deles. - Mas o mais estranho é ter-se afogado o tenente Jaime Concha que é de outro folhetim, e que já tinha morrido no incêndio de Callao, há três dias - voltou a intervir, morta de riso, a rapariga; tinha deixado a máquina. - Estes folhetins tornaram-se um gozo puro, não lhes parece?
Um jovenzinho aprumado, com ar de intelectual, sorriu para ela com benevolência e a nós deitou-nos um olhar que Pedro Camacho teria tido todo o direito de chamar argentino:
- Não te disse que isso de passar personagens de uma história para outra foi inventado por Balzac? - disse, inchando o peito com sabedoria. Mas tirou uma conclusão que o perdeu: - Se ele sabe que o estão a plagiar, manda-o para a prisão. - A piada não está em passá-los de uma para outra, mas em ressuscitá-los - defendeu-se a rapariga. - O tenente Concha tinha ficado queimado enquanto lia um Pato Donald, como é que agora se pode ter afogado?
- É um tipo sem sorte - sugeriu o jovenzinho aprumado que trazia os meus papéis.
Parti feliz, com os documentos oleados e sacramentados, deixando as duas senhoras, a secretária e os diplomáticos empenhados numa animada conversa sobre o escriba boliviano. A tia Julia estava à minha espera num café e riu-se com a história;não tinha voltado a ouvir os programas do seu compatriota.
(...)


mário vargas llosa - a tia júlia e o escrevedor

Sem comentários: