sábado, julho 19, 2008

a herança

não me lembro bem como foi que começou com ele. o avô estava a ficar esquecido, diziam-me. recordo-me, sim, de a progressão ser lenta e relativamente benigna. arterioesclerose, era o que lhe chamavam na altura. o avô tomava as gotas, mantinha-se sorridente e bonacheirão, às vezes perdia-se nos seus passeios diários. sempre calma, a avó telefonava a pedir ajuda. saímos de carro e encontrávamo-lo invariavelmente num dos pontos do seu trajecto habitual: alameda, jardim constantino, praça do chile. ficava feliz de nos ver, como se se tratasse de um encontro casual e levávamo-lo a casa. às vezes, durante os passeios de carro, lia compulsivamente os anúncios dos outdoors. ou repetia o que tinha acabado de dizer. a minha avó nunca lhe restringiu a liberdade. só quando ele ficou de fraldas e acamado, se sentiu incapaz de lidar com a situação e o internou num lar. ele tinha 85 anos e ela 80 e todos os dias saía de casa sózinha e apanhava os transportes para o ir ver. do areeiro para o príncipe real.
anos depois, a história repete-se. aos 72 anos, pouco depois de ter deixado de trabalhar, ela começa com os esquecimentos, só que, desta vez, agravados pelo pânico: "vou acabar como o meu pai". ao lado dela, também não encontrou uma presença serena como a da minha avó, antes alguém que alimentou o medo, restringiu a liberdade de acção, a substituiu nas tarefas e a isolou. a progressão foi galopante. durante cinco anos, ela fechada com ele: não mexas, eu faço, senta-te, veste-te, deita-te. ou vamos à rua, para as pessoas verem que ainda és bonita e estás bem tratada. e finalmente, ao fim de muitos anos de vida em comum, ela obedecia ao que ele mandava fazer. pena a decadência, o descontrolo, o desgaste. ele adoeceu, ela foi internada. passeia agora num corredor sombrio, os olhos cor de mel perdidos no vazio. creio que nos conhece, se bem que por vezes não saiba bem quem somos. ontem fui visitá-la. que havemos de fazer quando as palavras se tornam inúteis? como saber se há ou não sofrimento em quem não se sabe expressar? porque teima o corpo em persistir, o coração em bater, quando não se sabe de onde se veio ou para onde se vai? nem como, nem porquê.
às vezes, naquela rede de neurónios carcomida, alguma coisa faz contacto e uma frase faz sentido. quantas vezes pensamos que ela não nos entende e ela percebe tudo em silêncio? quantas vezes acontecerá o contrário?
alzheimer. na lotaria genética que nós somos, qual será a probabilidade de me calhar esta herança do meu avô e da minha mãe? que antes disso se me inundem os pulmões de fumo e as coronárias de colesterol, que se me dissolva o fígado em vinha d'alhos, que a velocidade me apanhe de surpresa na curva de uma estrada, janela aberta e pé no acelerador.

ou então, que um pedaço de vidro inunde de luz uma artéria.


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4 comentários:

Scarlata disse...

fogo... fiquei emocionada, estou aqui com um no' na garganta.

Nao penses nisso, se nao esses pensamentos arruinam-te a existencia agora. Sabes o que a minha me dizia? "quando morrer vou deitada!", para mim é o mesmo.
Un abraço grande e apertado.

margarete disse...

(...)

e um abraço.

© Maria Manuel disse...

força e um abraço.

bookworm disse...

obrigada, meninas.

chiquita, eu não stresso com o que me poderá acontecer, não cale a pena.

sei que é uma hipótese...entre muitas.