quinta-feira, setembro 20, 2007

Lisbon revisited # 1

A vida leva-nos por caminhos não previstos. Se aprendi a apreciar algumas das liberdades de que posso usufruir por viver fora da capital, terei sempre um fascínio pelas cidades, serei sempre lisboeta dos quatro costados. Por alguns relatos da família próxima, entrevi um pouco do crescimento de Lisboa e, dada a minha provecta idade (cóf, cóf...), relembro ainda algumas das personagens tipicamente lisboetas, entretanto desaparecidas, como os amoladores de tesouras e navalhas ou a mulher da fava rica. Segundo reza a história familiar, o meu tetravô materno terá sido dono do Areeiro, antes de desbaratar ao jogo todo o dinheiro que, lá por casa, andava ao molho dentro de potes. Assim me contava a minha avó, recordando uma velhota que lhe pegava ao colo quando ela era menina e lhe dizia, abarcando com os braços a extensão que a vista alcançava, quando a zona era ainda predominantemente agrícola: podias ter sido dona de tudo isto. Confesso que partilho do pesar da minha avó, não me importava nada de ter sido única herdeira do dono do Areeiro. Ela porém, que no Areeiro viveu toda a sua vida, nunca se deteve em carpir mágoas antigas e era um exemplo de serenidade e confiança como nunca conheci outro em toda a minha vida. Contava-me esta história no meio de muitas outras narrativas. Falava-me da mãe - muito nervosa - que, quando se enfurecia corria atrás dela com a machadinha de cortar a lenha, para depois lamentar os seus ímpetos assassinos e louvar a rapidez da gaiata em fuga para debaixo da cama para salvar a pele. Do pai, mulherengo e gastador, pouco me disse além do nome, do afecto e da saudade que lhe dedicou toda a vida, expulso de casa pela mulher intempestiva, que peremptóriamente recusou para os seus gastos supérfluos o dinheiro da casa que entendeu que não lhe pertencia, mas que nunca deixou de lamentar as palavras bruscas e desabridas que para sempre o levaram para longe dela. Nem por isso a condenava: Á sua pergunta Se o pai viesse para casa, aceitava-o de volta? bastou-lhe sempre a lacónica resposta Então pois, filha..., reveladora remorso da mulher cujos gestos e palavras lhe saíam antes de ter tempo para pensar. Desgosto, resignadamente assumido, era o de não ter estudado mais do que a terceira classe, por a mãe não desejar favorecer a educação da primogénita em detrimento da mais nova, pouco dada aos estudos - ou nas palavras da minha avó, pouco dada a eufemismos - burra com todas as letras e culpada de não querer aprender, um dos maiores pecados, segundo o original código de conduta que pautou a vida da minha avó. Viveu até aos noventa anos, manifestando sempre considerável abertura à modernidade e dona de uma muito razoável biblioteca, a qual ainda me proporcionou muitas horas de imersão total na leitura.

Ainda do lado materno, registo a memória de uma tia - irmã do meu avô - que morava em plena Av. Almirante Reis, numa enorme casa onde tinha também o atelier onde exercia como modista de chapéus, profissão entretanto caída em decadência, mas que nunca deixou de alardear com orgulho e frequência crescentes, sobretudo à medida que a velhice e a perda de memória lhe foram tomando conta dos solitários dias.

O meu avô, a quem o estatuto de funcionário hierarquicamente bem colocado na Câmara Municipal de Lisboa, lhe poderia ter rendido uma vivenda própria no - à altura - novo Bairro da Encarnação, sempre recusou saír do centro de Lisboa e do eixo Alameda-Areeiro, onde fez os seus passeios até ter deixado de ser capaz de saír de casa, mesmo quando nem sempre sabia como regressar e tínhamos de o procurar ao longo dos seus roteiros habituais.

O outro lado da família provém de um dos chamados bairros populares: O casalinho da Ajuda. O meu pai cresceu num pátio daqueles em que toda a vizinhança quase fazia parte da vida familiar, nadou nas docas de alcântara, trabalhou nos estaleiros da Cuf.

Tal como a vida, também a escrita nos leva por caminhos não previstos. Lisboa corre-me nas veias. Este post era para ser sobre a memória da cidade, a minha, directa, e a que me foi transmitida por aqueles que me foram próximos. Serve de introdução a uma série de imagens de Lisboa desaparecida, revisitada através das lentes de fotógrafos como Joshua Benoliel ou Gérard Castello-Lopes. Talvez seja também, para mim, o renascer da escrita, há muito bloqueada ou reduzida a frases soltas e nuas. A ver vamos.





Joshua Benoliel - Fotos do Arquivo da Câmara Municipal de Lisboa


5 comentários:

Anónimo disse...

através das tuas memórias, recuamos no tempo e (com a ajuda das fotografias) viajamos por uma Lisboa antiga...

gostei de te ler.
:)

Scarlata disse...

'Pera ai... este tenho que voltar ca' com calma para ler. ;)

Paulo disse...

Xiça-caraças-pá! Ao fim de uns anecos a ler-te tenho de confessar que tive agora uma surpresa bem agradável. Go on!

Scarlata disse...

Muito bonito, gostei muito, eu adoro ouvir/ler estas histórias de famílias e de sítios. Infelizmente quase não tive avós, ou seja, só conheci (pouco) a minha avó paterna. Bem, tive a senhora Maria, que aos fins-de-semana me contava histórias da Lisboa antiga e que guardava para mim umas línguas-de-gato, uns bolinhos ou uma simples maçã. Gosto de lembrar a velhota.

Fico à espera de mais posts destes. Escreves bem, e ler-te foi uma bela descoberta.
;)

bookworm disse...

opá, vocês assim deixam-me sem jeito...

o'rigada, o'rigada :D

(confesso que até eu própria estou surpreendida com este meu desbloqueio acidental)