domingo, abril 15, 2007

as páginas em branco

Os prazeres que nos reserva o uso do corta-papel são tácteis, auditivos, visuais e acima de tudo mentais. A progressão na leitura é antecedida por um gesto que atravessa a solidez material do livro para permitir o acesso à sua substância incorpórea. Penetrando por baixo das páginas, a faca sobe com ímpeto fazendo um corte vertical numa escorregadia sucessão de golpes que atacam as fibras uma a uma e as ceifam - com um crepitar alegre e amigo o bom do papel recebe este primeiro visitante, que anuncia inúmeros virar de páginas agitadas pelo vento ou pelo olhar -; maior resistência opõe a dobra horizontal, especialmente se for dupla, porque exige uma nada ágil acção contrária - aí o som é o de uma laceração sufocada, com notas mais graves. O bordo das folhas retalha-se revelando o seu tecido filamentoso; separa-se dele uma apara muito fina - chamada "caracol" - suave para a vista como a espuma das ondas na rebentação. O abrires caminho à espadeirada na barreira das folhas associa-se ao pensamento do tanto que a palavra encerra e oculta: avanças pela leitura adentro como por um denso bosque.
O romance que estás a ler desejaria apresentar-te um mundo corporal, denso, minucioso. Mergulhado na leitura, movel maquinalmente o corta-papel pela espessura do volume: a ler ainda não chegaste ao fim do primeiro capítulo, mas a cortar já estás muito mais adiante. E eis que, no momento em que a tua atenção está mais suspensa, viras a folha a meio de uma frase decisiva e te deparas com duas páginas em branco.
ficas atónito, contemplando aquele branco cruel como uma ferida, quase na esperança de que seja um encadeamento da tua vista a projectar uma mancha de luz no livro, da qual pouco a pouco tornará a aflorar o rectângulo zebrado de caracteres de tinta. Não, é realmente uma alvura intacta que reina sobre as duas páginas que estão lado a lado. Viras mais uma vez a página e encontras duas páginas impressas como deve ser. Continuas a folhear o livro; duas páginas brancas alternam-se com duas páginas impressas. Brancas, impressas, brancas, impressas: e assim por diante até ao fim. As folhas de impressão só foram estampadas de um lado; depois dobradas e encadernadas como se estivessem completas.
Assim este romance tão densamente entretecido de sensações de repente apresenta-se-te dilacerado por voragens sem fundo, como se a pretensão de dar a plenitude vital revelasse o vazio que está por baixo.


Italo Calvino - Se numa noite de Inverno um Viajante

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