quinta-feira, janeiro 04, 2007

A morte é apenas uma consequência da nossa maneira de viver. Vivemos de um pensamento a outro, de uma sensação a outra. Pois os nossos pensamentos e sensações não correm tranquilamente como um rio, eles "ocorrem-nos", na verdade caem dentro de nós como pedras. Se vocês se observarem atentamente, perceberão que a alma não é algo que troca de cor em gradações paulatinas, mas que os pensamentos saltam dela como algarismos para fora de um buraco negro. Agora vocês têm um pensamento ou uma sensação, e quase ao mesmo tempo aparece um outro diferente, como se surgisse do nada. Se prestarem atenção, podem até sentir, entre dois pensamentos, um instante em que tudo é absoluta escuridão.Esse instante, uma vez apreendido, é para nós o mesmo que a morte. (*)
Pois a nossa vida resume-se a definir marcos e a saltar de um para o outro, diariamente, passando por milhares de instantes de morte. De certo modo, vivemos apenas nos pontos de repouso. É por isso que temos esse medo ridículo da morte irreversível, porque ela é, em absoluto, o lugar sem marcos, o abismo insondável em que caímos. Na verdade, ela é a negação absoluta daquela maneira de viver.
Mas isto só é assim quando visto da perspectiva desta vida, apenas para aqueles que não aprenderam a sentir-se de outro modo, a não ser de instante em instante.
Chamo a isso o mal saltitante, e o segredo está apenas em superá-lo. Temos de despertar em nós a sensação de que a vida é algo que desliza tranquilamente. No momento em que isso acontecer, estamos tão próximos da morte como da vida.
Já não vivemos - à luz dos nossos conceitos terrenos -, mas também já não podemos morrer, pois com a vida superámos também a morte. É o momento da imortalidade, o momento em que a alma sai da estreiteza do nosso cérebro para entrar nos maravilhosos jardins da sua vida. (**)

Robert Musil - O Jovem Torless

(*) - citação segundo o livro - colecção mil folhas do 'Público'
(**) - citação segundo o blog do 'citador'
por verificar que a citação existia no blog, interrompi a transcrição, verificando depois haver diferenças significativas na tradução.

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