domingo, janeiro 14, 2007

as ruínas circulares # 3

Para retomar a tarefa, esperou que o disco da lua ficasse perfeito. Depois, à tarde purificou-se nas águas do rio, adorou os deuses planetários, pronunciou as sílabas lícitas de um nome poderoso e adormeceu. Quase imediatamente, sonhou com um coração a bater.
Sonhou-o activo, quente, secreto, do tamanho de um punho cerrado, de cor escarlate na penumbra de um corpo humano ainda sem cara nem sexo, com minucioso amor sonhou-o durante catorze lúcidas noites. Noite a noite, percebia-o com uma evidência cada vez maior. Não o tocava: limitava-se a testemunhá-lo, a observá-lo talvez, e corrigi-lo com o olhar. Percebia-o, vivia-o de muitas distâncias e de muitos ângulos. Na décima quarta noite roçou a artéria pulmonar com o dedo indicador e a seguir o coração todo, por fora e por dentro. O exame deixou-o satisfeito. Deliberadamente não sonhou durante uma noite: depois, tornou a pegar no coração, invocou o nome de um planeta e empreendeu a visão de outros dos orgãos principais. Em menos de um ano, chegou ao esqueleto, às pálpebras. O inumerável cabelo foi talvez a tarefa mais difícil. Sonhou um homem inteiro, um mancebo, mas este não se levantava nem falava nem podia abrir os olhos. Noite após noite, o homem sonhou-o adormecido.

Jorge Luís Borges - Ficções

3 comentários:

Jorge disse...

Espectacular!
Abraço.

Anónimo disse...

Deve ser muito bomm esse livro. :-)
Scarlata

bookworm disse...

de todas as histórias do livro, esta é a minha favorita. :)