terça-feira, dezembro 19, 2006

De repente notou - e era quase como se fosse pela primeira vez - quanto o céu ficava longe.
Foi como um sobressalto. Exactamente por cima dele reluziu entre nuvens uma nesga azul, indizivelmente profunda.
Sentiu que poderia subir até lá numa escada bem longa. Mas, quanto mais entrava ali, erguendo-se pelo olhar, mais o fundo azul e luminoso se encolhia, recuando. Era como se ele tivesse de alcançá-lo, segurando-o com os olhos. Esse desejo tornou-se torturantemente intenso.
(...)
- O infinito! - Torless conhecia o termo das aulas de matemática. Jamais imaginara algo de especial a esse respeito (...)
Agora, porém, varava-o como um raio a compreensão de que essa palavra continha algo terrivelmente inquietante. Parecia-lhe um conceito domesticado, com que fizera diariamente pequenas artes, mas que de repente se libertara. Algo que ultrapassava o entendimento, algo selvagem, aniquilador, adormecido pelo trabalho de algum inventor e que de repente despertara e se tornara novamente terrível. Ali, naquele céu, isso achava-se agora por cima dele, vivo e ameaçador, zombando sinistramente dele.
Por fim, cerrou os olhos, porque a visão torturava-o demais.
(...)
Ainda percebia o céu, imenso, silencioso, a fitá-lo lá de cima; agora recordava-se que muitas vezes essa impressão o dominara e, entre a vigília e o sonho, reviveu essas lembranças, enredado na sua trama.
(...)
Torless ficou dominado pelo anseio louco de ver duplamente todas as coisas, pessoas e factos. Como se se prendessem, de um lado, à palavra inocente e esclarecedora fornecida por um inventor qualquer e do outro lado fossem muito estranhas, ameaçando libertar-se a qualquer momento.
(...)
É sempre assim: aquilo que num momento experimentamos como indivisível e inquestionado torna-se incompreensível e confuso, quando queremos amarrá-lo com as cadeias do pensamento, tomando posse de si. E aquilo que parece grande e estranho enquanto as nossas palavras, de longe, anseiam por isso, torna-se simples e perde o que tem de inquietante mal entra no ritmo da nossa vida diária.
(...)
Era a falha das palavras que o torturava, a vaga consciência de que as palavras eram apenas subterfúgios transitórios para as coisas realmente experimentadas.
(...)
Voltara novamente os olhos para o céu. Como se, por acaso, ainda pudesse descobrir o seu mistério e decifrar o que havia nele de tão perturbador. Mas cansou-se e foi dominado por uma profunda solidão. O céu estava mudo. Torless sentia que estava completamente só debaixo da abóboda hirta e calada, como um diminuto ponto vivo sob aquele cadáver imenso e transparente. Isso, porém, pouco o assustou. Era como uma dor antiga, já familiar, que enfiam atacasse também as suas últimas fibras.


Robert Musil - O Jovem Torless

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