No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.
Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade
domingo, maio 07, 2006
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3 comentários:
é lindo este poema, alex!
sorry alex (e espero não ser ofensa para E. Andrade), mas posso escrever?
No mais fundo de mim, mãe,
eu sei que nos traímos mutuamente.
Eu, porque não consegui manter-me presa nessa moldura só tua.
Tu, porque tentaste manter-me nela
anos além dos anos.
Porque havia palavras havia gestos…
Esqueceste o mais importante, mãe:
ensinar-me a voar.
Por isso, quando chegou a hora,
quando o corpo já não cabia na moldura,
quando a vida exigia que plantasse
outras rosas minhas,
tive de voar sem saber,
abrir asas sem rede,
aprender enquanto fingia já saber.
Agora, estou cansada, mãe, tão cansada.
E tu chegas,
ofereces carinho, eu recebo-o,
porque entendo,
entendo que nada sabias além da moldura,
nada sabias além dos teus desejos.
nada sabes das feridas
desta minha viagem insana.
Já não consigo ir com as aves.
obrigada, margem.
gostei muito.
também tive de aprender ao mesmo tempo que fingia saber voar.
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